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A escolha entre deixar morrer e deixar viver em meio à pandemia

Vulnerabilidades, irregularidades na compra de imunizante e a tragédia de Manaus foram temas de entrevista em Programa da UFOP

Família manauara se consola diante de milhares de cruzes, durante a crise de medicamentos no Amazonas. Foto: BBC/Brasil

“A mistanásia ocorre quando há omissão do responsável por conceder o tratamento adequado em saúde de forma a evitar a morte”

No Brasil, desde o início da pandemia até o final de fevereiro de 2021, ao menos 72 mil pessoas infectadas pelo novo coronavírus morreram sem ter acesso aos leitos das unidades de tratamento intensivo (UTI). Os dados são do Sistema de Informação e Vigilância Epidemiológica da Gripe e apontam para uma triste realidade histórica do país, acentuada, desta vez, pela Covid-19: pessoas pobres e pretas estão na linha de frente do enfrentamento à doença, mas em último lugar quando precisam de tratamento adequado em saúde.

Isso é também o que afirma outro estudo, do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC-Rio, segundo o qual as chances de morte por Covid-19 no país são três vezes maiores para pacientes pretos ou analfabetos (76%) que para pacientes brancos com nível superior (19,6%).

Definida como “modalidade de término de vida”, a mistanásia, tema do programa “Em Discussão”, tem o significado bioético de “morte social”, aquela que se dá antes do tempo, pois poderia ser evitada. Caracteriza-se, assim, pela falta de ação ou pela ação inadequada daquele que deveria garantir o atendimento apropriado em saúde.

Caminhões venezuelanos chegam a Manaus durante a crise de abastecimento de oxigênio hospitalar no estado amazonense.

Para a especialista em Biodireito e Saúde e professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Iara Antunes Souza, o cenário descrito acima pode, sim, configurar crime de mistanásia, mas é preciso cautela, já que as mortes ocorrem em situação emergente, por conta da pandemia.

À frente do Centro de Estudos em Biodireito (Cebid) da Universidade, que desde março de 2020 promove lives sobre essa e outras questões éticas, a convidada do “Em Discussão” desta semana falou sobre a tragédia de Manaus, sobre as irregularidades na compra de imunizantes e também sobre a relação da mistanásia com as vulnerabilidades — “plurais e intersubjetivas, pois diversas e (re)construídas de acordo com as circunstâncias”.

Professora Iara, como o Direito entende o conceito de mistanásia?

Existe certo consenso em pensar que a mistanásia se refere à “morte miserável”, aquela que acontece antes da hora, que pode ser identificada em três situações: quando a pessoa não chega a receber o atendimento em saúde, por motivos políticos, sociais ou econômicos; quando a paciente não recebe o tratamento de saúde adequado, seja por questões econômicas, científicas ou sociopolíticas; ou ainda quando a paciente se torna vítima de erro médico ou dos demais profissionais de saúde responsáveis por seu atendimento.

Esse consenso foi afetado, de alguma forma, pela pandemia?

Antes da pandemia, o conceito de mistanásia era, por assim dizer, bastante aberto, ainda em construção. Segundo ensinam os professores Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves, referências para nossas pesquisas no Centro de Estudos em Biodireito (Cebid), o conceito de mistanásia envolve o entendimento de uma omissão do agente, público ou privado, responsável por conceder o atendimento e tratamento adequado em saúde de forma a evitar a morte da paciente, bem como a “má ação”, isto é, quando não é proporcionado ou quando é impedido o acesso adequado ao tratamento. Durante a pandemia, em razão do estado de emergência em saúde, a princípio poderíamos pensar que a inacessibilidade ao serviço de saúde e aos tratamentos, assim como eventuais erros profissionais, por si só não configurariam a mistanásia, estávamos todos vivenciando uma situação inédita para a nossa geração. Contudo, a realidade diante de algumas situações concretas de omissão e de “má ação” de governantes acabam configurando mistanásia, sim.

Como as irregularidades na compra da vacina indiana Covaxin, por exemplo?

Foto: Getty Images

Esse caso segue em investigação pela CPI da Covid-19 no Senado e também pela Polícia Federal, agentes legitimados para tanto. Contudo, caso comprovadas as irregularidades na aquisição da vacina Covaxin pelo Governo Federal, bem como o atraso injustificado na aquisição de outras vacinas, como a da Pfizer, atrasando o início da vacinação no Brasil, único meio cientificamente comprovado para evitar o número crescente de mortes pela Covid-19, vislumbro uma conduta omissa passível de configuração de nexo de causalidade com o evento de morte fora ou antes da hora. Em bom português: as mortes ocorridas poderiam se enquadrar no conceito de mistanásia, já que as pessoas não chegaram a receber o atendimento de saúde adequado, neste caso as vacinas, ou o receberam tardiamente por motivos políticos, uma má ação.

Temos também o caso de Manaus, não é?

Outra situação que poderia configurar mistanásia, sim. Nesse caso, as pessoas tiveram acesso ao atendimento em saúde, mas não receberam o tratamento adequado. Por questões sociopolíticas, testemunhamos a morte de pacientes por falta de oxigênio. No entanto, nas duas situações descritas acima, seja por omissão ou má ação dos agentes responsáveis, temos situações emergentes em razão da pandemia. Mas existem também as omissões persistentes, aquelas que perduram ao longo do tempo e que configuram a mistanásia quando geradoras de mortes, como a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), a falta de leitos, de medicamentos, de profissionais capacitados, entre outros.

E também as políticas para manutenção da saúde mental, historicamente escanteadas no debate público…

Olha, consigo visualizar as três situações de mistanásia nesse caso. Em primeiro lugar, quando a ausência de políticas públicas efetivas para manutenção da saúde mental veda o acesso da pessoa ao atendimento em saúde biopsicossocial, sendo tal omissão a causa da morte da pessoa em sofrimento mental, logo uma morte sem assistência, como em algumas situações de suicídio, por exemplo. Em segundo lugar, quando o atendimento em saúde mental não é adequado por questões econômicas, científicas ou sociopolíticas, resultando em morte por assistência deficitária. Em terceiro lugar, quando ocorre erro médico ou de outros profissionais que compõem a rede de atendimento em saúde mental.
A íntegra da entrevista está disponível em www.ufop.br.

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