Brasil chega à 22ª Copa sem ter sido comandado por um treinador negro em nenhuma das edições

Racismo estrutural se manifesta em outros ambientes do futebol: árbitros e goleiros negros são alvo de desconfiança

Didi, o "Senhor Futebol", foi o único treinador brasileiro negro a ir à Copa - mas comandou a seleção peruana
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Por Felipe Mendes/Brasil de Fato

Waldir Pereira, o Didi, é um nome histórico do futebol brasileiro por vários motivos. Foi eleito, por exemplo, o melhor jogador da Copa do Mundo de 1958, quando o Brasil conquistou seu primeiro título. É ídolo de Fluminense e Botafogo, clubes rivais. Atuou também no exterior, tendo inclusive passado pelo Real Madrid. Ao parar de jogar, se tornou treinador. E chegou à Copa do Mundo à beira do gramado. Porém, não foi como técnico da seleção do Brasil, e sim comandando a equipe peruana na Copa de 1970 – na melhor campanha da história desta seleção. O caso de Didi é emblemático para ilustrar o fato de que nunca um treinador negro chegou à Copa comandando o Brasil.

Única seleção a participar de todas as Copas do Mundo masculinas (a do Catar é a 22ª), o Brasil foi comandado por 15 treinadores diferentes nos torneios. Alguns, como o próprio Tite, foram a duas edições. Embora não questione a capacidade de nenhum deles, o diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, lamenta a falta de oportunidade para profissionais como Didi, que morreu em 2001.

“O único homem negro brasileiro que foi para uma Copa do Mundo como treinador, foi treinando a seleção do Peru. [Didi] Nunca foi reconhecido, nunca foi visto como uma possibilidade de um treinador de excelência no Brasil. A gente nunca teve um homem negro retinto, e a gente nunca teve um homem negro que chegou na seleção brasileira e falou sobre a questão de raça e cor”, afirmou ao Brasil de Fato.

Carvalho lembra o caso de Vanderlei Luxemburgo, um dos grandes treinadores da história do futebol brasileiro. Quando atleta, ele usava cabelo no estilo black power. Já na carreira de treinador ficou marcado pelos ternos e pelo cabelo cortado. Técnico da seleção entre 1998 e 1999, ele foi demitido antes da Copa do Mundo daquele ciclo, em 2002. Foi o único treinador negro não interino a comandar a seleção, segundo Carvalho.

Vídeo mostra lances de Vanderlei Luxemburgo na época de jogador

“Ele [Luxemburgo] muitas vezes não foi visto como um homem negro. O Vanderlei Luxemburgo aos olhos da sociedade enquanto jogador de black power é um, e o Vanderlei Luxemburgo treinador de futebol, de cabelo cortadinho, vestindo terno e gravata, ele é outro personagem para a sociedade brasileira. A sociedade brasileira faz essas análises assim. No Brasil a gente olha muito para a cor da pele, para a maneira que a pessoa se veste, se porta”, complementou o diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Com décadas de atuação como treinador, Luxemburgo, um dos técnicos mais vitoriosos do Brasil, reafirmou sua negritude em entrevista ao Brasil de Fato. “Geralmente somos nós os negros de origem humilde, né, que temos mais oportunidades de jogar futebol que o branco rico”, disse, em um dos momentos da conversa.

O caso de Didi foi um dos primeiros citados por Luxemburgo na entrevista. “O Didi comandou a seleção peruana numa Copa do Mundo e foi jogador de alto nível na seleção brasileira, só que não conseguiu chegar a técnico da seleção brasileira. Era um cara que tinha toda possibilidade de ser um técnico da seleção. Tinha todas as virtudes, qualidades para ser um técnico a nível de seleção brasileira, não conseguiu chegar”, lembrou.

Apesar de reconhecer que falta espaço para pessoas negras em posições de comando no futebol (e em outras áreas do esporte e da sociedade), Luxemburgo prefere não atribuir essa situação ao racismo. Para ele, os ex-jogadores só se tornam treinadores de sucesso depois que investem em formação técnica, o que é custoso e nem sempre acessível. O problema educacional, segundo o treinador, vem desde o início da vida dos meninos que se tornam atletas.

“Temos que ver isso na origem do futebol brasileiro, lá embaixo, nove anos, dez anos, onze anos, ensino fundamental, você começar a formar esses meninos que vão jogar futebol, formá-los como atletas e como educação normal de cidadão”, sugeriu.

Assunto é tabu

Ao preparar esta reportagem, o Brasil de Fato tentou contato com alguns treinadores negros do primeiro escalão do nosso futebol. Um deles, que está desempregado, foi gentil, mas recusou dar entrevista quando soube o tema. A alegação é que poderia haver impacto na busca por um novo trabalho. Este momento, com os clubes em férias, é de mercado aquecido.

Estar desempregado, aliás, é uma realidade tristemente comum para os poucos treinadores negros que têm espaço no mercado de grandes clubes do país.

Comandante do Vasco no vice-campeonato brasileiro de 2011, Cristóvão Borges ficou entre 2017 e 2020 sem trabalho. Assumiu o Atlético Goianiense e foi demitido ainda em 2020. Ficou sem trabalhar de lá para cá, até que foi contratado agora pelo Figueirense, que em 2023 vai disputar a Série C, a terceira divisão do Campeonato Brasileiro.

Campeão brasileiro pelo Flamengo em 2009, Andrade jamais voltou a ter oportunidades em clubes de primeira divisão depois que saiu do clube carioca, e o último time que treinou foi o Petrolina, da segunda divisão de Pernambuco, em 2017.

“Vamos lembrar de diversos treinadores que tiveram, inclusive ganharam títulos trabalhando, e depois disso tiveram um ou dois trabalhos e sumiram, enquanto tivemos outros tantos profissionais brancos que nunca foram campeões, mas estão sempre empregados nesse rodízio louco do futebol brasileiro. É preciso entender o quanto a sociedade é racista a ponto de essa mesma sociedade não querer um treinador de futebol negro no seu time”, pontuou Marcelo Carvalho.

Entre os vinte clubes que disputaram a primeira divisão do futebol brasileiro em 2022, apenas dois terminaram a temporada com treinadores negros: o Goiás, que era comandado por Jair Ventura, e o Santos, com o interino Orlando Ribeiro. Ambos não seguirão nos clubes para a próxima temporada.

“Com certeza o número de profissionais negros que estão sendo indicados para os gestores dos clubes de futebol é muito pequeno. Com certeza esses gestores também têm muitas dúvidas sobre a capacidade de homens negros em gerir uma equipe de futebol. A dúvida é sempre sobre a questão racial. ‘Será que esse homem negro será capaz de gerir minha equipe? Será que ele tem qualidade?’ Então é isso. O racismo vai impedir que a gente consiga ocupar esses espaços”, disse Carvalho.

Para tentar mudar o cenário, Vanderlei Luxemburgo abriu espaço em suas equipes de trabalho a diversos ex-atletas negros. Ele citou, por exemplo, Jayme de Almeida, que foi campeão da Copa do Brasil pelo Flamengo em 2013 e, depois de passar ao cargo de auxiliar técnico do próprio clube, não voltou a comandar uma equipe. 

“Eu pensei, ‘por que técnico brasileiro não tem preto, já que geralmente os negros são os melhores jogadores brasileiros?’ Dentro da história do futebol brasileiro, os negros são os caras que mais se destacaram. Por que eles não podem se destacar como técnicos também? Isso foi uma coisa que foi tentada”, contou.

Não são só treinadores

Apesar do enorme contingente de jogadores negros, eles não são vistos com frequência em outras posições relevantes no futebol – e não é apenas no comando técnico de equipes. Na arbitragem, por exemplo, são minoria. Mais que isso, muitas pessoas apontam que há um silenciamento. O ex-árbitro Márcio Chagas afirma que o meio do futebol é “opressor, colonial e dominado por brancos” e “qualquer pessoa que levante qualquer tipo de bandeira é limado do sistema”. 

“A discussão não existe. É um assunto velado, intocável. Ninguém fala sobre questões raciais no meio da arbitragem. Inclusive a Fifa, de uma maneira, no meu entendimento, omissa e covarde, em 2019 lança código disciplinar, transferindo toda responsabilidade para a arbitragem dos casos de racismo. Os árbitros é que têm que fazer todo procedimento de paralisação [da partida], comunicação através do representante da competição, e no último momento cancelar a partida e terminar o jogo. E aí vem meu questionamento: já viu algum árbitro europeu preto apitando? Não. Então não vai paralisar nunca”, afirmou ao Brasil de Fato.

De postura firme, Chagas se dedica a colocar em pauta questões raciais na arbitragem e no futebol como um todo, apesar de enfrentar resistências, especialmente no Rio Grande do Sul, onde nasceu e mora. Ele afirma que há muitos espaços onde as discussões têm avançado.

“Tem acontecido sim esse movimento dessa luta antirracista. Se a gente for observar, nos últimos quatro anos a coisa praticamente perdeu o controle no mundo inteiro, e aqui no Brasil mais ainda, legitimado por um desgoverno”, destacou. “O meio do futebol, na sua grande maioria, se a gente for observar, friamente, sem romantização, nada mais é que uma representação contemporânea da escravatura muito forte. É o único espaço do mundo que se fala em ‘comprar pessoas’ com naturalidade, sem se debater o quanto isso é perverso”.

A jornalista e escritora Milly Lacombe, colunista do UOL e da revista Trip, lembra que pautas ligadas à questão racial têm conquistado espaço entre as discussões de outros temas sensíveis que por muito tempo foram ignorados no meio do futebol.

“Os horrores estão sendo filmados, estão sendo registrados, estão sendo levados a delegacias. Embora não dê em nada, já é uma diferença em relação ao que a gente vivia. E isso para todos os horrores. Racismo, machismo, LGBTfobia. A gente começou a apontar e a gente sabe que é crime. Isso já é bastante coisa. É pouco, ainda, mas a gente já evoluiu muito”, afirmou.

Milly aponta que é preciso requisitar espaço para as pessoas negras em posições que não as de jogadores. Para ela, a pouca representatividade negra entre treinadores, árbitros e dirigentes é fruto do racismo estrutural.

“O jogador é aceito enquanto trabalhador. Corre, dá o sangue, é isso que você tem de fazer. Na hora de ser treinador ‘hmmm, talvez não’. Na hora de ser comentarista, ‘talvez não’. Na hora de ser diretor de clube e da CBF [Confederação Brasileira de Futebol], ‘talvez não’. Aí a gente vê o racismo. Então, sim, a gente deveria ter tipo metade dos diretores da CBF serem negros, metade dos dirigentes de clubes serem negros, metade dos árbitros serem negros. A gente tem que ser o que a gente é enquanto nação”, complementou.

Qualificação é importante

Marcelo Carvalho afirma que muitas vezes a falta de espaço para pessoas negras no futebol é justificada pela falta de qualificação – sem que haja qualquer reflexão sobre o custo necessário para garantir a formação e as licenças para atuar como treinador, por exemplo. Até por isso, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol se juntou à CBF e patrocinadores para o projeto “Professores Pretos”. Seis treinadores negros do país foram convidados receber gratuitamente cursos e licenças.

“O que a gente precisa fazer? Precisa fazer a promoção da diversidade, da inclusão. Isso passa por esse processo de conseguir cursos para profissionais negros, para que sejam capacitados, consigam ter as licenças, para que essa desculpa de não ter profissionais negros a gente não ouça mais. Então passa com certeza por esse processo que a gente está vendo muitas vezes nas empresas privadas, que é esse processo de inclusão, processo de querer ter mais diversidade entre os profissionais”, destacou.

“Nós precisamos colocar o negro, o jovem dentro do cenário brasileiro. O Brasil precisa que as pessoas entendam o Brasil da forma como ele é. Temos que inserir mais negros dentro da política, mais negros sendo técnicos de futebol, mais negros dentro do basquetebol, nós somos a maioria dentro do Brasil”, afirmou Vanderlei Luxemburgo.

Marco histórico na Copa

Não é apenas no Brasil que o futebol tem muito que caminhar quando o assunto são as questões raciais. O debate tem tomado as discussões em várias partes do mundo, aliado a discussões sobre xenofobia e crescimento de nazismo e fascismo. Ainda assim, aos poucos algumas conquistas são comemoradas. Uma delas, o fato de que todas as seleções africanas que disputarão a Copa do Mundo do Catar serão comandadas por treinadores locais – uma novidade, em vez dos tradicionais europeus brancos, que eram a regra.

Adversária do Brasil, a seleção de Camarões será comandada pelo ex-jogador Rigobert Song. O treinador de Senegal será Aliou Cissé, que já ocupou o cargo em 2018. Jalel Kadri (Tunísia), Walid Regragui (Marrocos) e Otto Addo (Gana) serão os técnicos das equipes de seus países no Mundial.

“Considero isso como a maior vitória que essa Copa do Mundo vai dar para quem luta contra o racismo. Se a gente olhar para o futebol a gente vai ver que a questão de treinadores negros não terem espaço não é só no Brasil, é uma questão mundial. Se olhar para a falta de confiança em goleiros negros, também é uma questão mundial. A partir do momento que a gente consegue ver esse cenário mudando, é uma vitória muito grande”, destacou Marcelo Carvalho.

“Vai dar a esses profissionais que estão tentando se colocar no mercado o sonho ou a possibilidade de pensar: ‘poxa, acho que o mercado está mudando, acho que tudo está mudando, acho que vou conseguir também chegar nesse lugar’. É o que eu sempre digo. A gente vive trabalhando com espelhos. Se consigo ver um profissional negro num determinado espaço, acredito que também consigo estar naquele lugar num futuro próximo”, complementou.

Quer saber mais sobre Didi? Veja abaixo – em espanhol – um breve documentário sobre sua carreira e como levou o Peru ao seu melhor momento futebolístico

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