A Cáritas Brasileira Regional Minas lança, em Mariana, nesta sexta-feira, 3/6, o museu virtual “Mariana Território Atingido” e o livro “O direito das comunidades atingidas pela mineração à Assessoria Técnica Independente”. Com participação de atingidos, representantes da organização humanitária e de outras entidades, o evento acontece a partir das 18h, no Auditório do ICSA, na Universidade Federal de Ouro Preto. O evento contará com uma mesa temática de lançamento e com visitas guiadas ao site, por monitores da Cáritas MG.
Já lançados em Belo Horizonte, na última semana, os produtos fecham parte de um ciclo de trabalho em prol da reparação justa e integral aos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão (Samarco, Vale e BHP), crime socioambiental ocorrido em 2015. Conquistado pela sociedade civil com muita luta, o direito à Assessoria Técnica Independente (ATI) aos atingidos pela mineração tornou-se um marco recente no contexto dos conflitos socioambientais causados por empreendimentos minerários em Minas Gerais.
A primeira ATI dessa natureza foi garantida às comunidades atingidas em Mariana, que escolheram a Cáritas MG como a entidade responsável por fazer o assessoramento técnico desde outubro de 2016. A partir daí, foi iniciado um extenso cadastramento e levantamento independente de perdas e danos em 2018, que será finalizado pela Cáritas MG em junho de 2022. Sendo assim, o lançamento em Mariana marca um momento afetivo de encontro entre as pessoas atingidas e os profissionais da equipe do Cadastro conduzido pela ATI.
O museu virtual e livro guardam diferenças: enquanto o site busca publicizar as informações coletadas, dando visibilidade à história das comunidades e ao impacto causado pelo crime em cada uma delas, o livro traz como objetivo consolidar relatos de experiências das entidades que vêm atuando como assessorias técnicas escolhidas por comunidades atingidas pela mineração em Minas Gerais.
ATI e o cadastramento de atingidos
Consolidado ao longo dos últimos quatro anos, o projeto do Cadastro pela Assessoria Técnica Independente em Mariana virou referência pelos princípios e metodologia participativas construídos e executados pela Cáritas MG junto aos atingidos. Em 2017, as pessoas atingidas conquistaram o direito de reformular o cadastro e de que ele, até então realizado pelas próprias mineradoras, fosse conduzido por uma organização independente. Um ano depois, a Cáritas MG assumiu a aplicação de um cadastro inovador, com a criação de instrumentos complementares capazes de levantar as perdas e danos materiais e imateriais, sempre considerando as diferentes realidades das pessoas atingidas.
Foram mais de 1.500 núcleos familiares e entidades cadastradas, alcançando mais de cinco mil atingidos no município de Mariana. “Os danos acumulados individualmente manifestam, de forma comunitária, a perda das relações humanas e com a natureza, dos modos de vida, dos acessos, segurança, saúde física e mental, paisagem e recursos naturais, além das perdas no âmbito econômico, histórico e cultural”, afirma Laís Jabace, coordenadora do Cadastro conduzido pela Cáritas MG. “O cadastro aplicado em Mariana garantiu outra definição de núcleos familiares, entendendo que os atingidos e atingidas agrupam-se conforme o seu sentimento de pertencimento ao núcleo familiar para responder aos instrumentos, em contraponto ao Cadastro anterior que estava vinculado à propriedade”, completa.
Para além da reestruturação do Cadastro, o trabalho buscou abordagens e linguagens distintas de modo a abarcar, da melhor forma, os danos e perdas da população atingida em Mariana. “Nota-se também a observação do direito à autodeclaração daqueles que são cadastrados, uma vez que todos aqueles que se reconhecem como atingidas e atingidos têm resguardado o direito de participar do cadastramento e definir a composição do núcleo familiar do qual acredita fazer parte”, pontua Jabace, ressaltando os desafios de sistematizar o Cadastro ao longo dos anos. “Com o passar do tempo, o conceito de atingido tende a se alargar, e os efeitos negativos, em decorrência do desastre-crime, na vida e nos direitos das pessoas, tendem a aumentar, fazendo com que um número maior de pessoas passe a se reconhecer atingidas e a pleitear seus direitos”.
O reconhecimento dos danos sofridos impulsionam a luta pela reparação, que se manifesta em diferentes pautas, como a exigência pela não prescrição do direito de cobrar na Justiça o ressarcimento aos danos causados pelas mineradoras. “A gente vem lutando desde quando entendeu que tinha direito, junto com o Ministério Público e outros órgãos que nos apoiaram. O nosso processo, aqui, está em andamento e eu entendo que não tem como um processo que está em andamento ir para prescrição”, explica Expedito Silva (Caé), atingido de Bento Rodrigues e membro da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão em Mariana (CABF). “O cadastro é importantíssimo, eu acho que ninguém tem que fazer acordo nenhum sem o cadastro porque é a prova que a gente tem”, pontua Rosária Duarte, atingida de Paracatu de Baixo, que também é membro da comissão.
Museu virtual das comunidades
Intitulado “Mariana Território Atingido”, o museu virtual surgiu dos anseios da equipe de que pudessem ser mais acessíveis ao público em geral as reflexões desenvolvidas nesse intenso processo de trabalho, elucidando perdas e danos causados às comunidades atingidas na bacia do rio Gualaxo do Norte através de mais de 1.500 dossiês familiares. “O site foi pensado como um instrumento para a coletivização das lutas. Na medida em que o processo reparatório foi se configurando de forma cada vez mais individualizada, esta plataforma respeita a privacidade das famílias, mas traz o que há de comum e fortalece a percepção de que os danos são comunitários”, afirma a coordenadora Laís Jabace. “Criar este site foi a forma que encontramos para constituir mais uma ferramenta de apoio à luta das pessoas atingidas, tendo sempre como orientação a pauta da reparação justa e integral”, completa, lembrando que o site também gerou um catálogo, que pode ser visto aqui.
O Museu Virtual apresenta mapas comunitários construídos a partir das centenas de cartografias sociais familiares realizadas junto aos atingidos, sobrepostas aos dados de geoprocessamento levantados nos atendimentos. “Esses mapas trazem a riqueza dos territórios e das comunidades atingidas, em um formato que visa imbricar as representações espaço-afetivas traçadas pelos sujeitos centrais de nosso trabalho às técnicas de informações georreferenciadas”, explica Paula Zanardi, assessora técnica da Cáritas MG que esteve à frente da criação do museu virtual. “Há disponíveis três camadas de visualização: Recursos Hídricos, Referências Comunitárias e Usos e Ocupações. Também é possível escolher sobre qual temporalidade observar os mapas: antes ou depois do rompimento. Esta navegação auxilia a compreender a transformação do território e o impacto socioambiental causado pelo rompimento”, destaca Zanardi.
Ao percorrer os mapas, o visitante pode acessar ícones georreferenciados que trazem conteúdos hipermídia sobre o território. A ideia é caracterizar cada uma das comunidades atingidas cadastradas pela Cáritas em Mariana, desconstruindo a dicotomia dos locais atingidos. “A passagem da lama tóxica dentro do terreno não é o único marcador para diferenciar os atingidos, visto que os danos causados alteraram profundamente a dinâmica social, cultural e econômica da região”, pontua Paula Zanardi. “A extensão territorial onde se encontram as comunidades atingidas em Mariana teve sua formação há mais de 300 anos. Para entender os danos, é fundamental a compreensão de como essas comunidades foram formadas e viveram ao longo dos séculos até o rompimento, bem como as relações que se estabeleciam entre elas e que foram profundamente desestruturadas pelo desastre-crime e pela demora do processo de reparação”, diz.
Para o museu virtual, foram produzimos ainda materiais sobre temas diversos, como criança e adolescente, gênero, águas, cultura alimentar, moradia, discriminação, tempos, entre outros. “Pretendemos, assim, qualificar o debate sobre desigualdades, racismo ambiental e injustiça social com os dados produzidos durante o cadastramento. O rompimento atravessou as vidas dessas comunidades e mostramos como, passados mais de seis anos do rompimento, ainda as afeta”, afirma Laís Jabace. “Contudo, não quisemos apresentar um território determinado a partir do desastre–crime, mas uma exposição dos elementos que perduram mesmo após a desterritorialização e a urbanização forçada de muitos atingidos. Tratamos das manifestações culturais, do patrimônio, dos modos de vida, dos ofícios e modos de fazer, toda a riqueza e pluralidade dessas comunidades”, completa a assessora.
Livro em defesa do direito à ATI
Organizado e publicado pela Cáritas MG, o livro “O direito das comunidades atingidas pela mineração à Assessoria Técnica Independente” é fruto do Projeto de Incidência na Pauta da Mineração, o PIPAM, desenvolvido desde 2019. Diferente do site, que é construído a partir de dados de cadastro das pessoas atingidas, a publicação parte da experiência de diferentes Assessorias Técnicas Independentes prestadas às pessoas atingidas em todo o estado de Minas Gerais em razão de danos causados por barragens e/ou empreendimentos da mineração. “Percebemos que em cada caso, as assessorias foram garantidas em um formato diferente, muitas vezes com distinção de escopo e governança, inclusive. Por isso, o livro se propôs a reunir relatos de experiências de entidades que vêm prestando esse assessoramento técnico independente a comunidades atingidas pela mineração em Minas Gerais. É uma forma de registro, de memória e, também, de estudo sobre esses diferentes formatos”, afirma Letícia Aleixo, coordenadora do PIPAM.
É importante ressaltar que outras comunidades atingidas pela mineração no estado também efetivaram o direito à ATI – como Itatiaiuçu (ArcelorMittal) e Conceição do Mato Dentro (Anglo American). No entanto, essa realidade ainda não saiu do papel para tantas outras, como as do médio e baixo Rio Doce, Macacos (Nova Lima), Barão de Cocais, Itabira e Antônio Pereira (Ouro Preto). Nos municípios em que as ATIs foram efetivamente implementadas, isso ocorreu por conta de acordos judiciais ou extrajudiciais, condicionantes de licenciamentos ambientais ou, ainda, de sentenças que condenaram os empreendedores a custear o direito das comunidades atingidas. Muitos territórios, porém, até hoje, pleiteiam o reconhecimento desse direito – daí, portanto, a importância de audiências públicas para pressionar as mineradoras e o Poder Público, como a que aconteceu dia 25/5, na ALMG.
Para a Cáritas MG, o livro pode contribuir com a consolidação do entendimento sobre as ATIs – em sua diversidade de perspectivas e sentidos – e auxiliar profissionais do Direito e atores do poder público que atuam em favor dos atingidos por barragens. Neste sentido, a publicação direcionou convites às entidades que, hoje, executam o assessoramento técnico independente às pessoas atingidas pela mineração em Minas Gerais, reunindo reflexões diversas que representam o esforço dos atingidos.
“Ao reunir e trazer a público diversos formatos e experiências das entidades que atuam no assessoramento técnico, o livro tem o potencial de contribuir não só com a continuidade da luta das pessoas atingidas em Mariana, como também de tantas outras comunidades afetadas pela mineração”, sublinha Aleixo. “Isso porque ele mostra a importância da realização de estudos técnicos independentes e de um diálogo de confiança entre pessoas atingidas e equipe técnica escolhida pelas próprias comunidades para garantia de maior engajamento comunitário na tomada de decisão sobre seus territórios e seus direitos”.
Sobre a Cáritas MG
A Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais foi fundada em 08 de março de 1989 e é uma das regionais integrantes da Cáritas Brasileira. A entidade se dedica ao Desenvolvimento Solidário Sustentável e Territorial, na perspectiva de um projeto popular de sociedade democrática. No dia 14 de setembro de 2016, após o Ministério Público de Minas Gerais ter postulado a Ação Civil Pública incidental nº 0400.16.003473-4, indicando a necessidade de uma assessoria técnica de confiança, a Cáritas MG foi a entidade escolhida pelas pessoas atingidas de Mariana.