Em conferência global organizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), nesta quarta-feira (22) em Paris, o governo defendeu a urgência da regulamentação das plataformas digitais e redes sociais. Em mensagem lida pelo secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social (Secom), João Brant, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva citou os ataques golpistas do dia 8 de janeiro em Brasília. “Não podemos permitir que a integridade de nossas democracias seja afetada por decisões de alguns poucos atores que controlam as plataformas digitais”, diz a carta endereçada à diretora-geral da agência, Audrey Azoulay, e coordenadora da conferência global Internet for Trust.
A conferência foi convocada ante o crescimento descontrolado do discurso de ódio e desinformação no mundo digital. A Unesco afirma que o mundo precisa debater como avançar rumo a uma internet confiável. Este é o tema principal dos três dias de debates na capital francesa.
Lula também lembrou as consequências ao país das campanhas de desinformação durante a pandemia de covid-19. “A disseminação da desinformação contribuiu para milhares de mortes. O discurso do ódio faz vítimas todos os dias”, afirmou.
Terrorismo pelas redes
Na mensagem, o presidente fez questão de usar os ataques golpistas contra as sedes dos três poderes, em Brasília, como exemplo de campanhas de desinformação promovidas pelas redes sociais. E enfatizou que o mundo precisa encontrar formas de responsabilizar as plataformas digitais por ocorrências como aquela.
“O que aconteceu naquele dia foi o culminar de uma campanha, iniciada muito antes, e que usou, como munição, mentiras e desinformação. Esta campanha tinha como alvos a democracia e a credibilidade das instituições brasileiras. Em grande parte, esta campanha foi alimentada, organizada e divulgada através de várias plataformas digitais e aplicativos de mensagens. Ela utilizou o mesmo método usado para gerar atos de violência em outras partes do mundo. Isto deve parar,” disse Lula.
Porém, o presidente reconheceu a complexidade da questão, e que é preciso legislar e controlar o ambiente digital sem causar danos. E destacou que a regulamentação de redes sociais precisa ter transparência e participação social. “Precisamos de equilíbrio. Por um lado, é necessário garantir o exercício da liberdade de expressão individual, um direito humano fundamental. Por outro lado, precisamos garantir um direito coletivo: o direito da sociedade de ter acesso a informações confiáveis, e não a mentiras e desinformação”, defendeu.
Diretrizes globais
Até amanhã (23), mais de 4 mil participantes vão discutir que tipo de regulamentação pode ser aplicada às redes sociais para proteger a democracia e os direitos humanos sem afetar a liberdade de expressão dos cidadãos. Entre os convidados brasileiros, além de Brant, estão o influenciador digital Felipe Neto, a jornalista Patrícia Campos Mello e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso. Os três foram alvos nos últimos anos de intensas campanhas de ódio, desinformação e assassinato de reputação.
O debate sobre o controle das redes sociais e a responsabilização sobre desinformação é uma das pautas consideradas essenciais do atual governo. No entanto, a conferência não tem caráter definitivo. Nesta primeira fase será discutido um esboço de recomendações globais para o ambiente digital.
O documento em discussão aponta, entre outras coisas, a necessidade de transparência sobre a moderação de conteúdos em plataformas como o YouTube, o Telegram e o Facebook, entre outras. Também pretende avançar sobre forma de responsabilização sobre a manutenção de mensagens contra os direitos humanos ou a democracia. A Unesco espera lançar ainda neste primeiro semestre um documento final com recomendações de controle das redes sociais.
Leia a íntegra da carta sobre regulação das redes sociais
À Sua Excelência a Senhora
Audrey Azoulay
Diretora-Geral da UNESCO
Senhora Diretora-Geral,
Gostaria de agradecê-la pelo convite para participar da Conferência Global da UNESCO que será realizada em Paris entre os dias 22 e 23 de fevereiro de 2023.
As plataformas digitais, em suas diferentes modalidades, são parte fundamental de nosso dia-a-dia. Elas definem a maneira como nos comunicamos, como nos relacionamos e como consumimos produtos e serviços. O desenvolvimento da internet trouxe resultados extraordinários para a economia global e para nossas sociedades. As plataformas ajudam a promover e difundir o conhecimento. Facilitam o comércio. Aumentam a produtividade. Ampliam a oferta de serviços e a circulação de informações.
Esses benefícios, no entanto, estão distribuídos de maneira desproporcional entre as pessoas de diferentes níveis de renda, ampliando a desigualdade social. O ambiente digital acarretou a concentração de mercado e de poder nas mãos de poucas empresas e países. Trouxe, também, riscos à democracia. Riscos à convivência civilizada entre as pessoas. Riscos à saúde pública. A disseminação de desinformação durante a pandemia contribuiu para milhares de mortes. Os discursos de ódio fazem vítimas todos os dias. E os mais atingidos são os setores mais vulneráveis de nossas sociedades.
O mundo todo testemunhou o ataque de extremistas às sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Brasil no último 8 de janeiro. Ao fim do dia, a democracia brasileira venceu e saiu ainda mais forte. Mas nunca deixaremos de nos indignar com as cenas de barbárie daquele domingo.
O que ocorreu naquele dia foi o ápice de uma campanha, iniciada muito antes, que usava, como munição, a mentira e a desinformação. E tinha, como alvos, a democracia e a credibilidade das instituições brasileiras. Em grande medida, essa campanha foi gestada, organizada e difundida por meio das diversas plataformas digitais e aplicativos de mensagens. Repetiu o mesmo método que já tinha gerado atos de violência em outros lugares do mundo. Isso tem que parar.
A comunidade internacional precisa, desde já, trabalhar para dar respostas efetivas a essa questão desafiadora de nosso tempo. Precisamos de equilíbrio. De um lado, é necessário garantir o exercício da liberdade de expressão individual, que é um direito humano fundamental. De outro lado, precisamos assegurar um direito coletivo: o direito de a sociedade receber informações confiáveis, e não a mentira e a desinformação.
Também não podemos permitir que a integridade de nossas democracias seja afetada pelas decisões de alguns poucos atores que hoje controlam as plataformas. A regulação deverá garantir o exercício de direitos individuais e coletivos. Deverá corrigir as distorções de um modelo de negócios que gera lucros explorando os dados pessoais dos usuários. Para ser eficiente, a regulação das plataformas deve ser elaborada com transparência e muita participação social. E no plano internacional deve ser coordenada multilateralmente. O processo lançado na UNESCO, tenho certeza, servirá para construção de um diálogo plural e transparente. Um processo que envolva governos, especialistas e sociedade civil.
Ao mesmo tempo, devemos trabalhar para reduzir o fosso digital e promover a autonomia dos países em desenvolvimento nessa área. Precisamos garantir o acesso à internet para todos, fomentar a educação e as habilidades necessárias para uma inserção ativa e consciente de nossos cidadãos no mundo digital. Países em desenvolvimento devem ser capazes de atuar de forma soberana na moderna economia de dados, como agentes e não apenas como exportadores de dados ou consumidores passivos dos conteúdos.
Esta conferência na UNESCO é o início de nosso debate, e não seu ponto final. Estou certo de que o Brasil poderá contribuir de forma significativa para a construção de um ambiente digital mais justo e equilibrado, baseado em estruturas de governança transparentes e democráticas.
Aproveito a oportunidade para apresentar os votos de minha mais alta estima e consideração.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Presidente da República Federativa do Brasil