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Racismo e declaração de direitos

Por Éverlan Stutz*

Ser negro no Brasil é um desafio diário, carregado por estigmas, violência e segregação social. Mas nossa sociedade hipócrita finge não existir racismo. O brasileiro adora nutrir ilusões para disfarçar a barbárie habitual da nação. Somos o país do carnaval, do futebol arte, do povo alegre e festivo. Mas por trás dessa cortina de fumaça, há um brasileiro hostil à diversidade e à igualdade racial e de gênero. Nossa cultura é racista, machista e homofóbica. A suposta imagem do “cidadão do bem” é a do homem branco, cristão e hétero que sempre esteve no comando.

Quando o negro consegue sair deste lugar subalterno do racismo estrutural e legitima o seu direito ao poder e à resistência, o racismo toma proporções assustadoras que vão além do preconceito na linguagem banalizada que parecia ingênua, mas nunca foi e nunca será. Parece comum ouvir frases do tipo: “é negro mas tem a alma branca”, “estou com inveja branca”, “branco correndo está fazendo atividade física, negro correndo está fugindo da polícia”. Em um país miscigenado e com a pluralidade de etnias, a sociedade brasileira insiste em tratar o racismo pela cor da pele, não pela raça. Esse é o diferencial do racismo à brasileira. 

O meu pai era negro. Mas ele negava isso constantemente. Tivemos discussões homéricas a respeito do seu negacionismo racial. Painho, como atribuímos à paternidade na Bahia, dizia categoricamente “não sou negro, sou moreno jambo”. Não sei de onde meu saudoso pai tirou esse eufemismo infeliz para negar a sua negritude. Ele sofreu muito preconceito para utilizar esse argumento pífio como defesa. Casou-se com uma mulher branca de sobrenome alemão para “purificar a cor dos filhos”. Em sua ignorância ou prevendo o horror de ser negro no Brasil, meu pai era racista, conservador e negro. Necessito recontar essa história para não suscitar dúvidas do sangue negro que corre em minhas veias, para não me acusarem de apropriação étnica ou qualquer uma dessas bobagens defendidas por extremistas de plantão. Ser negro não é uma questão de cor, é de raça. E todo brasileiro tem sangue crioulo.

Escrevi e fiz questão de declamar em vídeo e postar nas redes sociais a poesia Marielle, um poema-denúncia que retrata a execução de uma figura pública que ainda é um pacote de representatividade política e social. Sim, Marielle está presente, não se mata uma ideia. Marielle era negra, mulher da periferia, lésbica, defensora dos direitos humanos e vereadora na segunda maior metrópole do país. Quem mandou matar Marielle calou milhares de vozes, quem a matou não suportava o lugar de poder que ela conquistou com muita coragem e dignidade. Quem mandou matar Marielle continua matando milhares de negros anônimos nas favelas brasileiras.  Para ir contra o racismo, não é preciso ser negro. Para ir contra a homofobia, não precisa ser da comunidade LGBT+, para ir contra o machismo, não precisa ser mulher nem feminista, para ir contra ao atual desgoverno, não precisa ser de esquerda. Basta ter bom senso. Diante de qualquer injustiça não podemos nos calar.

Lutar por justiça social e racial é um dever de todo cidadão brasileiro que respeita a Constituição Cidadã de 1988, que declarou direitos aos quilombolas e aos indígenas, que ressuscitou dos escombros da ditadura militar a nossa frágil democracia, ainda balzaquiana e ameaçada por fascistas, racistas e pelo atual desgoverno que desconsidera as lutas históricas travadas por conquistas de direitos essenciais à dignidade humana. A filósofa Marilena Chaui tem um aforismo emblemático: “É necessário declarar direitos porque muitos desconsideram que temos direitos.” O combate ao racismo no Brasil deve ser uma pauta recorrente nas escolas, nos meios de comunicação, nas redes sociais, nas igrejas, nos partidos políticos e nas instituições que defendem os direitos humanos e o pleno exercício da cidadania.

Deixo aqui o vídeo-poema Marielle.

(*)Éverlan Stutz é jornalista, poeta, professor, ator e compositor.   

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