Por Jorge Matheus Oliveira Rodrigues
No dia 17 de julho de 2020, em entrevista à revista Veja, o general da ativa e atual ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, dizia: “ao todo, trouxe dezoito militares — quinze são da ativa. Apenas quatro militares estão em cargos de chefia, o resto é técnico. É essa a militarização do ministério. Qual é o problema nisso? Militar é um recurso humano formado e pago pelo contribuinte. Esse estigma precisa acabar”.
À época, respondia às críticas sobre a militarização da pasta e aos questionamentos sobre sua capacitação profissional para gerir pasta tão central na resposta à pandemia de covid-19.
A ascensão de Pazuello ao cargo se deu em meio ao caos instaurado no ministério. Inicialmente nomeado secretário-executivo na gestão de Nelson Teich, Pazuello assumiu o comando da pasta após a breve gestão do ministro, vinda a termo após sequência de desentendimentos com o presidente, Jair Bolsonaro, sobre as medidas contra a pandemia – os mesmos motivos, vale ressaltar, que levaram à demissão de seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta.
À época, o discurso era de que Pazuello possuiria robusta formação nas forças armadas, sendo especialista em logística, área fundamental para garantir a distribuição de uma eventual vacina e demais insumos necessários ao controle da pandemia. Desde então, os exemplos de má gestão se acumulam.
Em novembro de 2020, o jornal O Estado de S. Paulo reportava que um total de 6,86 milhões de testes para diagnósticos da covid-19 poderiam ser descartados pelo Ministério da Saúde por proximidade da data de validade. O número de testes que seriam descartados era maior que os 5 milhões de testes realizados pelo SUS.
Os exames foram estocados num armazém e não foram distribuídos para a rede pública. Na mesma época, Bolsonaro negligenciava a importância da vacinação em massa, afirmando que, quando disponível, ela seria voluntária. O presidente indicou ainda que não tomaria a vacina. A solução encontrada pela pasta de Pazuello foi a extensão, via Anvisa, da validade dos testes estocados pelo governo.
Naquele mesmo mês, o jornal Folha de S. Paulo noticiava, com base em informações da consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, a retenção da verba de combate ao vírus pelo governo. Então, após 8 meses de pandemia, Bolsonaro e Pazuello deixaram de gastar dinheiro reservado para mitigar os efeitos da crise sanitária e que envolviam contratação de médicos, reestruturação de hospitais, compras de testes de covid-19 para presídios, dentre outros.
Assumiram e impuseram ao país uma necropolítica, definindo os corpos matáveis entre a população .
Ainda ao lado dos insumos necessários no controle da pandemia, chama atenção a incompetência desastrosa do general-logístico na aquisição de seringas para vacinação da população. Vale ressaltar que, normalmente, a compra do material compete a estados e municípios.
Entretanto, durante a pandemia, o Ministério da Saúde optou por centralizar aquisições. Todavia, a negligência do ministério de Pazuello faz com que cheguemos às vésperas da vacinação com riscos concretos de desabastecimento deste um insumo básico.
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, o gabinete do ministro vinha ignorando há mais de 6 meses um pedido do Ministério da Economia que solicitava manifestação da Saúde sobre processo de importação de seringas da China. A importação se faz essencial num cenário em que a indústria nacional admite possibilidade de não conseguir atender à demanda interna. Na tentativa de lidar com o problema, o governo zerou a tarifa de importação do produto.
As mensagens, todavia, são dúbias. Após fracasso na primeira tentativa de compra das vacinas – o pregão instaurado pelo Ministério da Saúde conseguiu apenas 3% da quantidade de seringas requisitadas –, Bolsonaro anunciava suspensão de compras do produto até que preços “voltem à normalidade”.
Na contramão da centralização inicialmente adotada, Bolsonaro afirmou ainda que estados e municípios teriam estoque suficiente para início da vacinação, indicando assim a intenção de apreensão deste estoque. A tentativa de requisição de agulhas e seringas foi posteriormente barrada por medida cautelar emitida pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao fim, o governo optou pela compra de seringas da Organização Panamericana da Saúde, optando pela opção de frete mais demorado, por navio.
Por fim, cabe mencionar o episódio, símbolo do negacionsimo do governo, envolvendo a produção de cloroquina em laboratório do Exército. Em junho de 2020, o ministério da Defesa informava que as Forças Armadas armazenavam cerca de 1,8 milhões de comprimidos de cloroquina.
Além dos comprimidos estocados nos quarteis, 1 milhão já haviam sido direcionados ao Ministério da Saúde. A ampliação em 100 vezes da produção da cloroquina custou 1,5 milhão de reais. A droga não possui eficácia comprovada contra o novo coronavírus e, mesmo assim, tem sido alardeada por Bolsonaro como panaceia no tratamento à doença.
O medicamento segue encalhado e o general, como se viu em Manaus, segue suas rondas para incentivar o uso desta medicação, sem eficácia comprovada contra o vírus.
Destarte a gestão delinquente de Bolsonaro e Pazuello, entre atrasos na aquisição de seringas e negligência nas negociações da vacina, garantiram um aprofundamento ainda maior da crise instaurada pela covid-19. No processo, uma guerra política entre Bolsonaro e João Dória, governador de São Paulo, deu a tônica à espera da população brasileira, ansiosa pelo fim da pandemia.
Episódios como a desautorização pública de Bolsonaro a Pazuello quando este indicou intenção de adquirir a vacina produzida pelo Instituto Butantan é exemplo destes episódios em que a saúde pública se tornou ativo na disputa entre governador e presidente, potenciais rivais nas eleições presidenciais de 2022.
O resultado disso foi um vídeo gravado por Bolsonaro em que o presidente afirma “é simples assim: um manda, outro obedece”, ao lado de um Pazuello silenciado. Após atrito, o próprio Pazuello foi também protagonista de embates com o governador de São Paulo.
Em reunião com governadores para tratar de vacinação, depois de ser questionado por Doria se havia negligência por parte do governo federal em relação à Coronavac, o ministro reforçou de modo contundente que a vacina era do Butantan, não do governo de São Paulo. A intenção, por certo, era podar o personalismo de João Doria, dissociando seu governo do Instituto.
Nesse contexto, em meio à guerra da vacina e ao descaso de general e capitão na gestão da pandemia, é simbólica a manutenção da dotação orçamentária para projetos militares, bem como a manutenção de uma série de prerrogativas que lhes beneficiariam.
Lembremos, por exemplo, do penduricalho representado pelo reajuste de até 73% no salário de militares que fizessem cursos ao longo da carreira. Com custo estimado de R$ 26,54 bilhões em cincos anos, apenas em 2020 o “adicional de habilitação” teria impacto de R$ 1,3 bilhão.
Não bastasse, no dia 1º de janeiro, a Folha de S. Paulo reportava o veto de Bolsonaro à blindagem dos gastos para vacina contra a covid, enquanto preservava os projetos militares.
Em outras palavras, enquanto discutiam-se custos de aquisição de vacinas e insumos, armazenamento, dentre outros, os militares preservaram a dotação orçamentária necessária à condução de seus projetos, enquanto o governo sequer julgava pertinente proteger verbas eventualmente empregadas na compra de vacinas.
A participação dos militares no governo, por certo, levanta uma série de questões. Da simbologia política de um passado autoritário com o som dos coturnos na Esplanada, à problemática advinda da politização da caserna, vivemos as consequências mais graves da militarização no governo.
Se vemos cair por terra o mito da capacitação técnica dos fardados, tal desmistificação se deu a um custo humano muito alto: em sua incompetência na gestão da Saúde, os militares se fizeram corresponsáveis pela morte de mais de 200 mil brasileiros
É passada a hora de discutir o alinhamento ou não ao governo dos militares enquanto instituição ou de conjecturar as consequências para as Forças Armadas da politização dos quartéis. Entre tweets ao STF, cartas em tom de ameaça e ocupação de cada vez mais instâncias na administração pública, os militares, dentro e fora do governo, assinaram a autoria da crise social que vivemos hoje no Brasil.
É tempo de estabelecer um compromisso inequívoco pelo retorno dos militares aos quartéis e, para além disso, que se criem instrumentos de controle político de fato a uma instituição que pelo seu histórico já se demonstrou não merecedora de confiança.
Dos militares, em que pese a insistência de alguns, nada se espera. Dos civis, por outro lado, impõe-se o desafio de abandonar a postura negligente, por receio ou conveniência, quanto à ingerência política histórica desta instituição que, devendo ser um dos instrumentos armados do Estado, se comporta como partido político. Que os anos que seguem nos permitam, ao menos, construir as bases de tal acordo.
*Jorge Matheus Oliveira Rodrigues, mestre em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas. Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional(GEDES-UNESP) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Fonte: BdF