Sistema representou revolução social sem precedentes e é exemplo global, mas vive ameaça constante da falta de dinheiro
Nara Lacerda – Brasil de Fato
A promulgação da lei que colocou na prática o Sistema Único de Saúde (SUS) completa trinta anos neste sábado (19). Fruto de um momento de mobilização social único na história da democracia brasileira, o SUS é um dos pontos centrais da Constituição de 1989. Por meio dele, o país tentava corrigir distorções seculares. Ironicamente, desde que passou a existir, o sistema luta por financiamento. Ao mesmo tempo se consolida com execelência em diversos setores, aos trancos e barrancos.
Da invasão colonialista de Portugal, no século XVI, até a redemocratização pós-ditadura militar, quase 500 anos depois, a saúde da população brasileira sempre foi um retrato mais que fiel das desigualdades do país. Ao longo dos séculos, a dinâmica de acesso a quem tinha dinheiro e a negação do direito à população mais pobre se perpetuava com graus diferentes de perversidade.
Se no Brasil Colônia a saúde não era prioridade em absoluto e os cuidados eram baseados no conhecimento de curandeiros e pajés, a estruturação que veio séculos depois não alcançou a todos. Exemplos históricos não faltam e não é difícil conectar os avanços a interesses meramente econômicos.
O início dos processos de sanitização e combate a doenças no país se concentrou em regiões portuárias, uma tentativa explícita de não prejudicar exportações. Os cuidados urbanos vieram acompanhados da eliminação e destruição de cortiços, o que reforçou a exclusão geográfica dos pobres nas grandes cidades.
Pela necessidade se forma a ideia
Na ditadura militar, a assistência só era garantida a quem podia pagar ou a quem tinha carteira assinada e a privatização recebeu incentivos consideráveis. A estrutura pública de saúde era precária, reduzida e destinada a quem contribuía com a previdência. O resto da população estava oficialmente na categoria de indigente. Contava apenas com os poucos hospitais universitários e as instituições filantrópicas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, que pode ser ouvida na íntegra, logo abaixo do título dessa matéria, o médico sanitarista, professor e ministro da Saúde no governo de Dilma Rousseff (PT), Arthur Chioro, relata como a saúde funcionava no Brasil até então.
“Antes do SUS, a imensa maioria dos brasileiros que não tinham carteira de trabalho assinada e não contribuíam com a previdência era literalmente considerada indigente. Essas pessoas dependiam da filantropia, das Santas Casas e beneficências e do saber popular, das benzedeiras, da medicina leiga, das ofertas de ordem religiosa. Isso explicava por que o Brasil tinha mortalidade infantil da ordem de duzentos, por que o brasileiro vivia tão pouco e por que as populações eram dizimadas por doenças infecciosas”.
O professor Nelson Rodrigues dos Santos, do departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), usa a expressão “inusitada pressão pela inclusão social e o direito à saúde” para descrever o movimento que antecedeu à criação do SUS.
Em artigo cedido especialmente ao Brasil de Fato para a citação, ele afirma “Reportando 1990, 1º ano do SUS, metade da população brasileira mais pobre carecia de qualquer assistência à saúde e doença”. A reação só foi possível porque, segundo o professor, havia uma consciência sobre conceitos como “Universalidade, Equidade e Integralidade”.
Essa pressão foi fortemente influenciada pelo movimento de Reforma Sanitária, que na década de 1970 defendia mecanismos de proteção contra a privatização da saúde. Os debates da Constituição Cidadã e insatisfação com a falta de acesso também permearam a demanda popular.
Sistema único revolucionário
A partir da implementação do SUS, em 1990, começava a tentativa de consolidação da saúde como direito universal no Brasil. Com o novo modelo, qualquer um passava a ter atendimento garantido em qualquer esfera. Antes disso, menos da metade da população conseguia acesso.
As políticas diminuíram a mortalidade infantil em mais de 70%, aumentaram a expectativa de vida do brasileiro, ampliaram acesso a atendimento pré-natal, mudaram os tratamentos para doentes mentais, as ações de combate a doenças e a vida da população em geral.
Foi também por meio do SUS que cerca de 90% dos transplantes do país passaram a ser realizados. Tratamentos de alta complexidade, tecnologias e medicamentos começaram a chegar a quem vivia totalmente à margem. Hoje, todos que procuram a uma unidade do SUS têm direito ao atendimento, independentemente de origem, histórico ou condição financeira.
O Sistema Único de Saúde é reconhecido internacionalmente pelas ações de atenção básica do programa Saúde da Família, por exemplo. A iniciativa atende mais de 120 milhões de brasileiros regularmente. As equipes atuam conhecendo a realidade dos pacientes, prestando orientações frequentes e acompanhamento constante. O reconhecimento vem da própria Organização Mundial da Saúde (OMS), que incluiu o Saúde da Família entre as melhores iniciativas do planeta na área.
É também por meio do SUS que o Brasil oferece acesso gratuito e universal aos tratamentos de HIV/Aids e hepatite, de custo altíssimo. No caso da Aids, estimativas apontam que o sistema alcança cerca de 90% dos soropositivos do país. Em duas décadas, a mortalidade entre essas pessoas caiu mais de 40%.
Soma-se a esses exemplos, um complexo de milhares de hospitais, mais de 50 mil ambulatórios, equipamentos móveis e uma infinidade de profissionais. São cerca de 2 bilhões de procedimentos a cada ano, entre cirurgias, tratamentos, internações, vacinas, campanhas e outras atividades. É possível dizer que o Sistema Único de Saúde representou uma revolução sem precedentes.
Chioro é taxativo ao dizer que considera impossível imaginar uma volta ao passado. “É impossível para um país que escreveu na Constituição que a saúde é um direito, imaginar que ela vai voltar para uma lógica de mercado. Ainda mais quando a gente sabe que a imensa maioria da população brasileira é dependente do SUS para tudo. Nós vamos voltar atrás?”
Investimento sempre foi insuficiente
A lista de revoluções que o Sistema Único de Saúde trouxe para a população brasileira é grande, mas o financiamento destinado a ele nunca foi suficiente. Quando foi estabelecido pela Constituição, havia a previsão de que o SUS receberia 30% do orçamento da seguridade social, o que nunca se efetivou.
“O pior é que, quando a gente chega em 1993, o Ministério da Previdência Social deixa de repassar recursos para a saúde, criando uma situação muito grave”, relata o professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Funcia.
Até mesmo o mecanismo criado para contornar o problema, a Contribuição Provisória Sobre Movimentações Financeira (CPMF), não foi usada exclusivamente para a saúde. Criada no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ela foi motivo de polêmica. Causou o pedido de demissão do então ministro da Saúde, Adib Jatene, descontente com a destinação de parte dos recursos para outros fins por parte da equipe econômica da gestão tucana.
“A questão somente se equaciona no ano 2000, com a Emenda Constitucional 29, em que foi possível estabelecer um piso para a saúde, da União, dos estados e municípios. Foi o primeiro momento em que se encontrou uma forma de reduzir a questão da instabilidade do financiamento do SUS.”
Anos mais tarde, no pós-golpe contra a presidenta petista Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer (MDB) estabeleceu o teto de gastos para as despesas primárias do governo por 20 anos, com a Emenda Constitucional 95, de 2016. Segundo Funcia, isso gerou um problema a mais para o SUS.
“Tentaram dizer que a saúde estava protegida porque tinha um piso, mas nós discutimos na época que o piso estava desidratado, é um piso depreciado, que cai ano após ano. Não garante nada, não protege a saúde. Muitos dizem que é um piso e que é possível gastar mais. Mas esse argumento cai na discussão do teto. Além de ser um piso depreciado, para gastar mais você precisa tirar de outra área”, avalia.
O professor acrescenta: “A saúde não pode ser entendida apenas como assistência. Ela envolve um conjunto de outras áreas sociais. Se deterioram as condições sociais das pessoas, deterioram também a saúde e vai ter mais pressão nos gastos”.
Com o teto de gastos o investimento no SUS, que era de 15,77% da receita corrente liquida em 2017, caiu para 13,54% em 2019. A nova regra diz que o piso de 2017 será mantido por duas décadas, corrigido apenas pela inflação. O congelamento do piso e o crescimento da população fazem cair consideravelmente o investimento em saúde por habitante. Em três anos, o SUS perdeu mais de R$ 22,5 bilhões.
“Sem dúvida nenhuma as condições de saúde da população sofreram bastante. Os estados e municípios também ficam prejudicados porque dois terços do orçamento do Ministério da Saúde são destinados para o financiamento do SUS nos estados e municípios.”, ressalta Funcia.
A pandemia
O teto de gastos dificultou as possibilidades de enfrentamento do novo coronavírus e a estrutura do SUS entrou na crise sanitária global depreciada. Além disso, os recursos definidos pelo governo federal demoraram a chegar.
O estado de calamidade pública foi decretado no início de março, mas a maior parte do orçamento sequer tinha sido executada até a primeira semana de junho. Na ocasião, o Brasil já havia entrado no lamentável platô de mais de seis mil mortes por semana, que durou quase quatro meses.
Francisco Funcia vê cenário crítico também para o pós-pandemia. “Essa morosidade na execução orçamentária guarda relação direta com uma visão de austeridade fiscal que está presente na equipe econômica. Pior, essa equipe econômica acha que, a partir de 2021, as condições serão retomadas nas mesmas bases do final de 2019. Aquilo que está apresentado para a proposta orçamentária de 2021 ignora que houve em 2020 um ano com pandemia”.
O corte será mais considerável do que o que foi visto até aqui. “O orçamento volta para os níveis de 2019, atualizado só pela inflação. Com isso o SUS vai perder R$ 35 bilhões.” Funcia destaca que o valor equivale a 35 vezes o que o governo gasta com o Samu, 17 vezes o que é investido no programa Farmácia Popular e duas vezes e meia o que é gasto com o Saúde da Família.
Apesar do “desfinanciamento”, o SUS ainda é apontado como a grande arma brasileira para enfrentamento do novo coronavírus. A cada dia, a percepção de que sem ele o Brasil poderia ter entrado em colapso aumenta. “Nós nunca tivemos uma oportunidade de tanta legitimação do SUS junto à população, de tanta respeitabilidade aos trabalhadores que estão expondo sua saúde e suas vidas”, afirma Arthur Chioro.
O desafio, segundo ele, é transformar o SUS em uma bandeira social. Nesse sentido, é essencial que os próprios usuários do sistema tenham voz e representatividade para integrar a luta pela sua defesa.
“Nunca ficou tão claro que para a gente ter desenvolvimento econômico, para ter desenvolvimento social e proteger a vida da população, nós precisamos ter um sistema nacional de saúde potente. Então, está dada a possibilidade de fazermos a disputa simbólica pela defesa do SUS”, conclui.
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